De coração em coração – Heron Cid
Bastidores

De coração em coração

14 de junho de 2020 às 15h30

Meu avô paterno, Cosme Ferreira Marques, que não conheci, era poeta. Migrante de Bananeiras, ainda menino. Em Santa Cruz, no Rio Grande do Norte, com sua Maria, fez família.

Tiveram uma dúzia de filhos. Naqueles difíceis anos, o radialista, poeta e professor de proventos módicos não tinha dinheiro para gastar no aniversário dos rebentos.

O presente vinha em forma de versos. Da alma, um poema para cada um. Tenho alguns deles guardados comigo. Quando os fez, ele nem sonharia que seu exemplo pudesse inspirar gerações seguintes.

Décadas depois, o neto aqui – herdeiro do apreço e afeto pelas palavras – copia o homem que deu vida a Jeca Tabua, pseudônimo criado para assinar poesias matutas do seu livro “Canastra Véia”, publicado na década de 40.

A cada aniversário dos meus, um poema ou uma crônica para os novos ramos da descendência que o poeta de ontem semeou.

Pai e franco atirador de rimas em horas não tão vagas, compreendo a dimensão transcendental de gesto tão largo.

Hoje, me peguei pesquisando mais sobre o veio dessa fonte que me jorrou para o mundo. Encontrei depoimentos e homenagens.

Nenhuma delas expressa mais do que o prefácio de sua obra unigênita, assinado pelo grande folclorista, jornalista, historiador e estudioso Luis da Câmara Cascudo, em 1949.

LUIS DA CÂMARA CASCUDO

Apresento-vos ao poeta Cosme Ferreira Marques. Todos os seus versos estão reunidos, como vegetação legítima do sertão, flores, cardos, corimbos, folhas, no bojo da canastra véia acolhedora e una.

Vereis a simplicidade comunicativa do poeta e os elementos que ele dispôs para fazer ouvir sua voz até as margens do mar, vinda do coração da terra norte rio grandense entre as pedras altas e brancas dos serrotes, dos taboleiros imensos, povoados pela estridência metálica da seriema.

Jeca Tabúa mora na cidade de Santa Cruz, um ramo de quilômetro para o interior. Cercado de filhos, ganhou até poucos meses, vencimentos que seriam recusados por uma semana de trabalho urbano. Duzentos cruzeiros mensais!

Com esse dinheiro, a família tradicionalmente viva, palpitante de inteligência e de vibração, bem grande e bem resignada, o poeta não deixou de cantar e sonhar, entre pedras e sofrimentos, numa atitude obstinada de exilado que teima em olhar, no horizonte longínquo, a sombra da terra em que nasceu.

Não haverá valorização mais alta, irrespondível e lógica que o perguntar-se ao criador em que estado e circunstância psicológica realizou a sua criação.

Certo é que o talento é determinador de maravilhas em qualquer posição tomada ante a vida. Mas vamos pensar no que seria Alexandre Magno tendo nascido na Albânia ou Vitor Hugo cidadão de Karthum. E se o elemento econômico, ambientador, não anima ou retarda o voo luminoso da poesia. Ninguém discute que os poemas da Liberdade foram escritos na cadeia e que quase todos os mestres do Humorismo foram homens tristes, de vida triste.

Cosme Ferreira Marques é poeta que, antes do livro, nos dá uma lição de perseverança e de fidelidade letrada. Tudo que o podia desanimar e vencer não o desanimou nem o venceu. Passou epidemia, tempestade, crise, desalento, como um avião atravessa nuvem ou, lembrando um verso de Ferreira Itajubá: – um gume cortando polpas de maçãs maduras.

Quando muita gente desanimou e virou homem prático, acabando rico e dispéptico, Jeca Tabúa continuou poeta, poeta, poeta.

Vereis, Leitor bem intencionado, que todos os temas desse livro são assuntos humanos, episódios domésticos, nomes de filhos, de amigos, de companheiros, ramos da paisagem doce e ambiental que o cerca.

Para Cosme Ferreira Marques, para sua inteligência sensível e grande coração afetuoso, a Poesia é a grande consoladora, a luz serena, dando calor e guiando.

Para ele a Poesia é sagrada e ritual, como Saadi, Omar Kaiiam, Tagore ou Mistral.

Nada mais emocional que esse pai que não pode comprar um presente para o aniversário da filhinha, o mais simples, o mais pobre, o mais humilde presente. Para festejá-la escreve um soneto, uma canção e entrega à filha, como a oferta do seu sangue, a luz do espírito, o ritmo do coração. A pena, como o bico do pelicano clássico, abre o peito e a filhinha recebe um presente arrancado à alma que a gerou.

Lembro que, na Idade Média, quando os trovadores e troveiros viajavam sempre, passando e repassando a muralha dos Pirineus, indo para os reinos de Castela, Aragão, Leão e Navarra, indo para a Provença, para o condado portugalense do conde Afonso Henrique, não tinham, muitas vezes, uma só moeda na sacolinha pobre. 

Chegava o poeta, o felibre, o mestre cantor, na cabeça de uma ponte. Era preciso pagar a travessia, o direito de pedágio. O poeta parava, erguia a citara ou o citolon, e cantava, ao vento triste da tarde, uma canção. Era a moeda que Deus lhe dera para viver.

Cantava e passava. Pagara o direito do pedágio.

Assim Jeca Tabúa, Cosme Ferreira Marques. Quando a emoção lhe exige os direitos da impressão mental, quando a família lhe pede a prova da alegria cordial, quando os amigos recordam, inconscientemente, o dia de festa e de oferta, o poeta, sem a moeda que os homens fabricam e que vale tudo para a poeira do Mundo ergue a voz, cantando num verso simples, o direito de cunhar e circular a outra rutilante moeda cujos domínios estão em todos os espíritos.

E assim passa, de coração em coração, para o Futuro…

Passou tanto que, sessenta anos depois, chegou ao meu coração. E eu repasso adiante para o jardim dos meus filhos em singelas gotas de versos anônimos e despretensiosos. Certo de que, até na aridez, a semeadura da poesia sempre brota frutos.

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