Caixões e covas no horário nobre; entre o normal e o anormal – Heron Cid
Opinião

Caixões e covas no horário nobre; entre o normal e o anormal

6 de maio de 2020 às 16h38 Por Heron Cid

Abstraio-me de escrever hoje, neste espaço diário de opinião. Valho-me do impecável texto do confrade Laerte Cerqueira, professor da UFPB e comentarista da TV Cabo Branco.

Em artigo publicado pelo Observatório da Imprensa, Laerte fala por mim, fala por colegas, fala pelo jornalismo.

Direto, preciso e pedagógico, o pensamento do jornalista radicado na Paraíba traz luz em meio à trevas, empresta razão na tempestade de radicalismo que subitamente abateu o Brasil.

Não chega nem a ser uma defesa do jornalismo. O jornalismo não precisa de defesa. Ele é o que é por essência. A mensagem de Laerte Cerqueira é uma tentativa de alertar que é normal ao papel do jornalismo enfrentar, retratar, narrar e criticar anormalidades.

Anomalia é quando a imprensa abdica da sua missão e normaliza o medo, a dor, a morte, o pranto. Quando, na tentativa do mundo ideal, vende ficção para anestesiar a realidade.

Nessa pandemia, mesmo pagando o preço, às vezes físico, às vezes mental, o jornalismo informa o que é devido e necessário. Ainda que a consequência venha em forma de ódio e até com a máscara do risco iminente do desemprego, num mercado paralisado e de receitas publicitárias em queda.

Com erros e acertos, o jornalista, meu caro Laerte, realmente não é um ser normal. É anormalmente humano.

Sobre caixões e covas no horário nobre: o retrato da realidade brasileira

Viver, curar-se, é a normalidade. Anormal é morrer. Anormal é morrerem quase 6 mil pessoas em menos de dois meses. O jornalismo questiona e relata a anormalidade. Pede soluções para a anormalidade. Nesta tempestade, mostra o que é, de fato, dolorosamente anormal: caixões empilhados, covas e enterro sem despedida. A preço de hoje, difícil imaginar que é aproveitar a tragédia para vender (até porque, ninguém está vendendo nada), como acusam alguns fanáticos da conspiração da mídia.

É para lembrar, alertar para muita gente irresponsável, que não é normal essa situação. Para lembrar que não é normal escolher quem vai morrer ou viver, como têm feito muitos médicos no país. E é isso que deve ser relatado, denunciado. Não vamos ver, em nenhum país do mundo e em nenhuma época, o jornalismo priorizando “o elevador funcionando”, porque ele foi feito para funcionar. Mas o jornalismo vai questionar e mostrar que o elevador quebrou, matou, feriu ou assustou alguém. As curas, as boas histórias, estão na TV e nos sites. É fácil encontrar em qualquer busca.

Jornalistas choram com boas histórias. E como é bom vê-las. Realidade que alivia. Mas também choram e sentem muito em ter que relatar as mortes, as desigualdades e distorções. Relatar milhões de pessoas embaixo de chuva e sol, arriscando-se para conseguir um auxílio de 600 reais. Ali tem desespero, tem falha do poder público, tem que ter jornalismo. Não foi a mídia que criou a pandemia, a falta de respiradores, a falta de equipamentos de proteção individual, as centenas de mortes por dia. O tratamento dado a esses temas tem que ser real, com todas as dores.

A realidade, que machuca, ganha destaque porque é usada para cobrar solução, porque a sociedade precisa estar em unidade, porque a politicagem vai matar mais gente, porque o poder público, colchão protetor, não pode lavar as mãos; porque a tarefa da imprensa é questionar. Fora isso, é assessoria. Pânico? Pode ser um efeito colateral. Mas, quando a onda vem sobre as nossas cabeças, soa como um aviso. Daqueles que exigimos nos terremotos, desabamentos de terra e estouros de barragens. Um alerta para a sensatez, para a solidariedade: proteger-se e proteger o outro. Esse é o alarme que avisa: “corra, cuide dos seus, cuide do outro, vamos diminuir a dor, vamos diminuir sofrimento, vamos para um lugar seguro”.

O recorte do jornalismo, o enquadramento, claro, precisa destacar isso. É que, para cobrar a normalidade, é necessário mostrar o anormal, com a subjetividade de qualquer ser social. Há quem vá se sensibilizar com as imagens, há também quem vá entender que o excesso pode nos tornar mais insensíveis. A questão é que, para a maioria, os números, infelizmente, só deixarão de ser números que causam pânico (e não um alerta) quando o enterro sem despedida, uma espécie de apagão, for de alguém próximo.

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Laerte Cerqueira é jornalista, professor universitário, doutor em Comunicação (UFPE) e autor do livro A função pedagógica do telejornalismo.