Valdir Teles: meu pai vive em tudo que fez (por Mariana Teles) – Heron Cid
Bastidores

Valdir Teles: meu pai vive em tudo que fez (por Mariana Teles)

29 de março de 2020 às 12h33
Valdir e Mariana Telles: a poesia de pai para filha

Resgatei do face de Mariana Teles, sem autorização dela, este belíssimo depoimento sobre o seu pai, o poeta Valdir Teles, que morreu há exatamente oito dias, em sua casa de Tuparetama, de repente, como fez versos de repente a vida inteira que Deus lhe deu até aos 64 anos, quando o sequestrou para fazer cantoria no céu com João Paraibano, seu velho par de desafios em pé de parede.

Em tempo: embora advogada, Mariana é poetisa como o pai e faz a gente chorar com seus belíssimos textos. Confira!

Sobre o artista de carisma único, raciocínio veloz e voz inconfundível, eu deixo que o Nordeste fale e o Brasil confirme. Sobre o cigano que desbravou tantos sertões defendendo a poesia popular e fazendo da viola a principal arma de todas as trincheiras, as plateias falam por mim. Sobre o cidadão de bem, trato fácil, jeito de matuto e coragem de sertanejo, quem depõe é a sua história. 

Eu falo sobre o pai Valdir. Não consigo ter nenhum outro sentimento maior que a gratidão de ser fruto da sua verve, da sua existência. Painho foi antes de tudo um abnegado. Um cometa/homem desses de rara aparição e que vivem séculos em poucos anos. Soube ser o que nunca teve: pai. Órfão aos onze anos, ele nos deu um amor tão genuíno, demonstrado nos gestos e nos sacrifícios de uma existência plena de afeto.

Eu lhe dizia todos os dias o quanto o amo. Transborda nos meus olhos a devoção não pela sua obra somente, mas pela cidadania impressa em cada ação. Ação. É isso que meu pai sempre foi: um homem de ação.

Lá em casa a porta sempre tem que está aberta e a mesa cheia. 

Meu pai é meu amigo, de atravessar os estados no Nordeste me levando a tiracolo quando nossas agendas se batiam ou quando por pura satisfação de ficar perto dele eu pedia para ir junto. Ouvindo forró, improvisando vaneirão, me ensinando versos dos cantadores do passado ou me contando as novidades dos movimentados bastidores da cantoria.

Mandava mensagem três da manhã para dizer o resultado de um festival ou saber se eu estava bem. Quando eu ainda morava em casa, não havia uma só vez que antes de dormir ele não fosse de quarto em quarto… Por ele eu assisti muito jogo do Flamengo sem gostar só para ficar perto dele.

Andava procurando onde comer um bode com arroz. Não sabia passar uma semana sem ir a Patos, nem passava para Serrinha sem parar nos grossos. 

A vaidade dele estava no aplauso. O riso saia fácil quando estava ganhando a palma do povo. Isso irritava concorrente, mas só dentro do desafio tão peculiar a cantoria mesmo. Malabarista no mote em dez.

Eu agora me dei conta que não estou conseguindo diferenciar o pai do poeta. Mas é porque os dois se misturam mesmo.

Ele é celebração de vida. Nunca vi gostar tanto de comemorar aniversário. A festa começa cedo e termina tarde. Eu, quando me aperreava com seu desmantelo e como tudo que fez (de improviso), dizia assim: Rapaz, painho! Vamos deixar para fazer a festa ano que vem, mais organizada… Ele olhava e dizia: Deixa de ser besta, festa faz quem tem amigo e quando tu nascesse eu já fazia. 

De tudo como pai ele só fracassou em duas coisas comigo: não conseguiu me ensinar a dançar forró nem dirigir. E olhe que tentou muito, as duas coisas. 

Aos seus olhos eu sempre fui muito maior. Respeitava meus silêncios, esperava eu espernear com os gritos, depois chegava manso que só ele e dizia: é só ter calma que as coisas se resolvem… Você parece que não sabe esperar. 

Nunca vi ele dizer que cantou mais ou melhor que ninguém. Mas eu sabia quando cantava e quando não. E dizia a ele. 

Painho não acreditava quando eu comecei a escrever as primeiras estrofes. Ele achava que era de Glaubenio (meu irmão do meio). Depois que mostrei a Geraldo Amancio Pereira, Sebastião da Silva e Nenen Patriota ele começou a acreditar, mas nunca deu pitaco. Quando eu pedia para ele “arrumar” um verso pra mim, ele dizia que eu esperasse um pouquinho que a inspiração chegava… precisava pedir a ninguém não. 

Inimigo de balaio. Defensor genuíno do verso improvisado, sua maior habilidade. 

Seu jeito de incentivar era muito peculiar, não era de elogios rasgados, mas na sisudez do seu olhar um gesto doce denunciava o orgulho. E aí ele começou a exagerar, nisso aí ele me estragou um bocado. Tudo que eu fazia ele dizia que estava bem feito. Menos cozinhar. 

Eu nunca disse que queria ser advogada. De tanto ver a casa com jornalistas entrevistando ele e ter passado parte da infância em estúdio de rádio esperando ele terminar programa eu queria ser jornalista. Passei nos dois vestibulares e na hora de escolher, já influenciada pelos irmãos para fazer Direito, ele olhou e disse: não vá por Alencar (meu irmão) não, faça o que você quiser que você vai ser boa. 

A gente discutia até assistindo o jornal Nacional. Minha curiosidade por política nasceu de tanto ele contar e imitar os discursos de Asfora, Ronaldo, Marcos Freyre. Segundo minha mãe, nenhum dos dois tinha vergonha. Para cada discordância um cheiro (sempre roubado) na careca. 

Acompanhando Painho eu pude ver que seu talento mesmo era de fazer amigos. Uma legião. Toda cidade que a gente passava eu sabia quem era o seu amigo. Nunca cheguei em nenhum lugar que não encontrasse um fã ou um amigo. Ele gostava de andar parando em todo lugar. De Tuparetama a Cajazeiras (por exemplo), ele encontrava motivo para parar em todo canto. Em Teixeira pra ver um cd, em Patos para olhar uma peça de carro, mais na frente para comprar uma melancia…

Passou pela Bahia, Patos, Caicó, Limoeiro do do Norte, mas ouviu o coração, escolheu Tuparetama e aqui educou os três filhos. Sou a única pernambucana e pajeuzeira da casa e isso me deixa bestinha. 

Chegava sempre em casa as segundas feira, já vinha com um quarto de bode e perguntando a Mainha dos compromissos da semana. Vi todas as vezes ele entregar todo o dinheiro dos cachês a ela. Nunca soube o que era uma conta em banco nem pegar uma fila. Ruim de fazer negócio, nunca foi bom em lidar com dinheiro, só sabia ganhar, o resto sempre foi com Dona Elza, mas um artífice na singularidade de se vender. A agenda superlotada era seu maior orgulho. Cantiga fácil, dessas que entra mesmo no povo. Às vezes eu ia comentar sobre sua produção poética em um ou outro evento e ele dizia: eu não estava cantando pra você não Mariana, eu canto é para o povo mesmo. Muito mais vaidoso por aplausos do que por nota de comissão julgadora. Sua produção poética havia crescido muito na última década e isso não é depoimento de filha, é unanimidade. A velocidade dos versos (sua maior marca) ganhou a polidez da experiência. 

Eu digo sem medo de errar que sou um dos seus grandes amores, nossos extremos se encontram nos nossos abusos e no orgulho mútuo. Seu chapéu de couro está comigo. Mas mais do que isso, sua forma humana de enxergar o mundo. Vi muitas vezes ele voltar numa estrada para entregar uma esmola. 

Minha melhor companhia disparada. Conhecia meu humor pelo tom da bênção e sabia melhor do que ninguém quando eu estava arrodeando para pedir alguma coisa… Não sabia dizer não. A ninguém. Muito menos a mim. 

Eu não perdi Painho. Painho vive nas minhas lutas, não conheço ninguém que lutou mais pela sobrevivência do que ele. A dignidade que deu a vida da família foi fruto de noites de sono e estradas, violas e bandejas. 

Ele é vida. Celebração de sucesso. Fama genuína. Amor de verdade. Vive em tudo que fez, no universo dos versos, na história de repente. E uma obrigação enorme nos deixa: sua cidadania na nossa caminhada.

Cantou para Xuxa, FHC, Lula e Sarney. Mas era no pé de parede da casa mais rústica do sertão seco ou molhado que sua inspiração reinava a vontade.  

Viu tudo que sonhou para os filhos, a cura do câncer de Mainha e a multidão de aplausos. 

Descansou na sua pátria: a Serrinha. No seu melhor palco. No seu mais honesto colo. 

Sobre Painho é só gratidão, saudade e responsabilidade. 

Por aqui continuamos negão, eu desmantelada do teu tanto, mas levando uns gritos dos meninos para me organizar… Vaidosa que só tu também. 

Galderise com teu mesmo abuso e tua correção nas coisas.

Mainha limpando os chapéus. 

Glaubenio já ouviu uns duzentos baiões de cantoria e todos os teus vídeos. 

Didiza cuidando de Bia.

A Serrinha molhada e o feijão nascendo. 

Enfim, tudo do jeito que sempre foi. Porque tua luz ela é. Não se apaga. Teu verbo é hoje, é sempre.

Um homem/cometa, rara aparição na terra, mas luz que transcende todos os outros planos.

Que na tua nova vida sigas inspirando a gente e me dando o que sempre me pedisse pra ter: juízo…

Nosso amor não vem desse plano nem termina no outro. É carne, mas sempre foi muito mais sobre o lado de dentro… Lá ta doendo porque amanhã eu não vou ligar perguntando com quem é a cantoria, mas tua luz segue… Teu palco agora é ainda mais iluminado e teu aplauso não termina mais no final do verso. Porque você é isso. Homem cometa. Quem veio de onde você veio, passou o que passou e construiu e construiu não se apaga nunca, meu amor. 

Meu amor.
Só meu amor
Meu amor mesmo
Meu amor.

Obrigada por me ajudar tanto a voar, sem jamais ousar tomar o lugar das minhas asas. Me ensinar sobre liberdade sem me prender, sobre responsabilidade sem exigir e por acreditar tanto nos meus sonhos. Mais do que nunca você será o combustível deles. Sentido de tudo, negão.

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