Meu pé de seriguela – Heron Cid
Bastidores

Meu pé de seriguela

29 de março de 2020 às 14h30
Quintal de casa na rua Ana Rocha, número 18, em Marizópolis-PB, na década de 1990; por trás da fotografia, Hernon Hilário, meu irmão que partiu bem cedo (Foto: Arquivo Pessoal)

A chegada de sempre ao quintal de casa foi diferente. Lá embaixo, a imagem rasgou o comum de supresa e desalento. Havia acabado de chegar, no pingo do meio dia, depois da escola e da viagem de todo santo dia à cidade vizinha.

Incrédulo perguntava a si mesmo e depois à mãe, como chamava pela bondosa avó, o que havia acontecido com os pés de seriguela. A resposta trespassou o peito. O tio Zé havia derrubado tudo para evitar as folhas e o trabalho para tirá-las.

Só fizeram pelas costas, pensava metido a valente. Se estivesse na hora, teria gritado e protestado.

Lá estavam tombados no leito de morte, mesmo cheio de tanta vida. Não havia como compreender aquela áspera providência contra quem só dava verde e frutos o ano inteiro, sem cobrar nada.

Mas, era mais do que o sabor e a fartura abundante para todo gosto: de vez, inchada e vermelha feito uma rosa, doce que nem favo, se espremendo entre um galho e outro, desabando madura e enfeitando o chão.

Via o triste fim, a existência precoce dos confidentes, um mundo à parte. Refúgio repentino e repetido do menino calado, doente de timidez. Nele se socorria à cada visita de estranhos ou nem tão desconhecidos assim.

Quando se esconder dentro da rede não resolvia, carreira para o “muro”, onde viviam silenciosos os bons e seguros abrigos, amigos. Subia nos seus braços em segundos, mesmo pouco hábil em alturas e na arte da exploração. Uma das poucas que se arriscava e que a coragem dava para encarar.

Agora, no lugar de suas asas frondosas, o vazio. Aquele planeta particular virou um buraco ermo, desértico, sem cor e sem graça. Nem adiantava o consolo. Nada os substituiria. Mas ninguém ligava, ninguém sabia o significado daquele corte. Doía que só.

Eles já guardavam muitas histórias, confissões, ilusões, sonhos. Eram amigos compreensivos. Só ouviam desabafos e ofereciam os ombros por calos de veias em erupção de resinas semelhantes a mel de abelha.

Palavras tatuadas em seus membros. Nomes, batismos. No ventre gentil, safras, muitas e generosas safras.

Pelas suas frestas, o sol entrava devagar e incandescia levemente. Os olhos penetravam os orifícios daquele tecido de sombra e proteção e viajavam pelos azuis dos céus. Rodopiava, girava sem encontrar nunca um fim. Só começo, só recomeço.

Debaixo deles, horas de pensamentos flutuantes. Na dúvida, no medo solitário, o pai protetor e conselheiro que faltava. Foi portal de travessia da infância para outros desejos. A testemunha única e conivente da primeira incursão adolescente. Confidentes, viram tudo calados.

E nem estava para defendê-los da dor derradeira, da machadada por motivo fútil. Nem houve despedida. Já se chegou para o enterro frio bem naquela “hora do almoço”. Na cabeça quente, nunca mais haveria aquela sobremesa natural e espumada de sumo.

Abatedores e cúmplices estavam recolhendo os restos mortais. Todas as histórias e confidências abafadas dentro de sacos, condenadas à sequidão. Aquelas colunas de castelo incomum, escadas e cômodos de imaginação no máximo queimariam alguma fogueira no próximo São João.

No rápido lance de olhar durante a passagem gélida dos féretros até o carro do lixo na calçada, deu tempo apenas de fazer uma promessa por ser cumprida. Um dia seriam resgatados e renasceriam noutras raízes. O menino de mim continua lá, à espera. Agora com outros meninos. Aqueles com quem sonhava aos seus pés que um dia seriam meus.

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