Momento kafkiano (por Fernanda Young) – Heron Cid
Bastidores

Momento kafkiano (por Fernanda Young)

12 de agosto de 2019 às 12h00
Jurei para mim mesma que hoje não iria escrever sobre o presidente. Já falei tudo que havia para falar, já desabafei, já debochei. A sensação de que nada adianta é acachapante. O cara é isso mesmo e não vai mudar. Até porque ele não quer mudar, acha-se o máximo. E os que votaram nele parecem ter assinado um contrato com sangue. Que tipo de argumento faria um bolsonarista mudar de opinião? Não sei. Tentei vários, aqui neste canto. Muitos outros tentaram, alguns brilhantemente, em diferentes páginas. Alguém que gostava dele deixou de gostar? Tenho minhas dúvidas. Eu, cada vez mais, não vejo nada ali para ser gostado. Mas aquilo que não suporto, nele, é justamente o que seus eleitores adoram. Então para que insistir neste assunto?

Enfim, de manhã acordei com essa leveza n’alma: não escreverei o nome dele. Tão animada com minha decisão, que resolvi fazer ginástica logo cedo. Cuidar da saúde: muito melhor que me indignar com a última declaração do excelentíssimo. Saindo de casa, porém, saltitante de otimismo, percebo, pasma: uma barata tonta, manca, arrastando-se no tapete da sala. Tirá-la dali, naquele momento, indo para a academia, seria moralmente devastador. Assim, fingi que não vi e fui embora — alguém mais iria ver e dar um jeito.

Fiz ginástica torturada pela culpa. Deixei uma barata tonta zanzando pelo meu tapete. A cada minuto, mais impregnada. Em minha imaginação microscópica, as fibras de tapeçaria eram contaminadas pelas impurezas dos cabelinhos nas pernas da barata. O tapete jamais seria o mesmo. Um rastro invisível estaria ali, permanentemente, para me lembrar do fato. Germes viveriam ali para sempre. Pensei em desistir de tudo. Sair da academia e ir para um boteco, encher a cara. Voltar a fumar. Uma barata tonta no meu tapete e eu não fiz nada.

Quando voltei para casa, vi, num misto de terror e alívio, que a barata continuava lá. Terror, pois o problema permanecia intacto, alívio, pois eu poderia fazer algo a respeito. E, fazendo, desconfiei que o destino estava de simbolismo comigo.

O Globo

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