Democracia não se resume à forma de eleição de um dirigente. Por Reinaldo Azevedo – Heron Cid
Bastidores

Democracia não se resume à forma de eleição de um dirigente. Por Reinaldo Azevedo

15 de outubro de 2018 às 07h00
Manifestação de protesto contra Mubarak na Praça Tahrir no dia 1º de fevereiro de 2011. Egito continua a ser uma ditadura, agora com eleições

A democracia não se resume a uma forma de escolha dos dirigentes: a eleição direta. Fosse assim, Irã, Turquia e Rússia, por exemplo, seriam expressões acabadas de regimes democráticos. E, no entanto, estamos diante de manifestações distintas de… ditaduras. E por que merecem essa designação? Porque os grupos que comandam o poder nos três países impedem que seus respectivos adversários disputem o poder em igualdade de condições. Ao contrário: nesses regimes, o Estado legal, a forma como lá se manifesta o chamado “estado de direito”, já incorpora a discriminação como parte da normalidade institucional. A democracia também se manifesta na qualidade da vida cotidiana, na liberdade que têm os mais distintos grupos de se organizar para apresentar suas demandas, no reconhecimento da legitimidade do outro para existir e expor o seu ponto de vista.

Experiências recentes de países sacudidos por ondas de opinião que expressavam um clamor público que parecia apontar para uma nova aurora logo degeneraram em experiências desastrosas porque faltava àqueles que comandavam a “revolução” a compreensão de que a vitória eleitoral não confere ao que triunfa o direito de aniquilar o outro. Pensemos no caso do Egito e as manifestações da Praça Tahrir, ou “Praça da Libertação”. Ali a mal chamada “Primavera Árabe” encontrava a expressão mais eloquente do que se chamou também de “Revolução do Facebook”. Ou, vá lá, das redes sociais. Em grande medida, era mesmo verdade: as redes eram o meio que permitia a organização — ou concentração ao menos — daqueles que queriam derrubar a ditadura odienta de Hosni Mubarak

Uma ditadura de 30 anos caiu em três semanas. O primeiro protesto aconteceu no dia 25 de janeiro de 2011; no dia 11 de fevereiro, Mubarak foi deposto pelos militares — embora a versão oficial dê conta de que ele renunciou. No dia 23 de junho de 2012, Mohamed Morsi, candidato da Irmandade Muçulmana, venceu o primeiro pleito presidencial pós-Mubarak. Era a evidência fática de que Facebook e redes sociais não derrubam nem elegem ninguém, mas o fazem aqueles que fornecem os conteúdos para as redes sociais. E era a Irmandade Muçulmana. O meio de difusão de mensagens certamente tem uma importância enorme. A questão é saber como e com quais valores estão sendo alimentadas. O simples despertar de maiorias para isso ou aquilo não garante o poder a ninguém.

A mesma Irmandade Muçulmana que chegou ao poder um ano e meio depois de ter dado início às convocações para a Praça Tahrir foi derrubada no dia 3 de julho de 2013 por um golpe de Estado liderado pelo general Abdel Fattah al-Sisi. Morsi entendeu que as urnas lhe haviam conferido poderes para implementar no país uma ditadura religiosa — afinal, ele era o líder de um partido abertamente muçulmano, que, não obstante, acenara com a tolerância no processo eleitoral. Foi deposto. Al-Sisi foi confirmado presidente em eleições diretas consideradas suspeitas, ocorridas em 2014, e reeleito em 2018 com mais de 90% dos votos, algo de fazer inveja àquele tempo em que Saddam Hussein era dono da vida e da morte no Iraque.

Não! Não estou batendo na cangalha para o burro entender. Estou sendo o mais explícito possível: o fato de uma pessoa liderar uma “revolução”, ainda que seja de opinião, e vencer uma eleição não lhe confere todos os poderes nem faz dela, por conta desses eventos, uma democrata nata. Mubarak, um ditador, foi deposto pelas ruas e substituído por um presidente eleito que, não obstante, ignorou os termos de sua ascensão — justamente a eleição direta — para impor uma agenda que conferia a si e a seu partido prerrogativas próprias de uma ditadura. Morsi foi vítima de um golpe desfechado por um general que decidiu ele próprio disputar eleições para transformá-las em meros instrumentos justificadores da nova tirania. E quem paga ao pato é o Egito. Ou melhor: os egípcios.

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