Enquanto Cármen berrava o “morro foi feito de samba”, o sangue corria no morro. Por Reinaldo Azevedo – Heron Cid
Bastidores

Enquanto Cármen berrava o “morro foi feito de samba”, o sangue corria no morro. Por Reinaldo Azevedo

21 de agosto de 2018 às 10h33

Se, por alguma razão, Deus lhe conceder a graça de um único pedido, não hesite: que o Altíssimo jamais permita que você perca o senso do ridículo. Nesta segunda, enquanto o pau comia no Rio, em Roraima e em toda parte; enquanto o país pisava no acelerador do pacto com o indeterminado; enquanto o presidente do TRF-4, desembargador Thompson Flores, concedia uma palestra no Clube Militar a convite do general Hamilton Mourão — vice de Jair Bolsonaro —, a ministra Carmen Lúcia, presidente do STF, soltava a voz, tentava remexer os quadris e mandava ver, a plenos pulmões: “Não deixa o samba morrer/ não deixe o samba acabar…”.

A criação de Edson Conceição e Aloísio Silva ainda é o maior sucesso da cantora Alcione e marcou, em 1975, a sua estreia para o grande público. Lá se poetiza:
“Não deixe o samba morrer
Não deixe o samba acabar
O morro foi feito de samba
De samba pra gente sambar”

Aquilo a que se assiste no vídeo, pra começo de conversa, é uma usurpação da frase de Vinicius de Moraes. O túmulo do samba, até esta segunda, era São Paulo. Não mais! A lápide oficial, agora, é Brasília. Mas a ironia era mais macabra. Nesta segunda, o morro era feito de sangue e bala. Informava O Globo:
“O Comando Militar do Leste confirmou, no início da noite desta segunda-feira, que mais um militar foi morto à tarde, durante a megaoperação iniciada durante a madrugada em conjuntos de favelas da Zona Norte. O soldado João Viktor da Silva, de 22 anos, foi atingido num confronto, no interior do Complexo da Penha, no fim da tarde. Mais cedo, o cabo do Exército Fabiano Oliveira Santos morreu baleado na ação, realizada na Penha, na Maré e no Alemão.

Na chamada megaoperação, morreram ainda cinco suspeitos e um outro militar foi ferido…

Quem sambou no morro nesta segunda, ainda que no morro metafórico, sambou sobre cadáveres.

“Não deixe o samba morrer…”

Como se explica o vídeo? É que o Conselho Nacional de Justiça promoveu, nesta segunda, no STF, o seminário “Elas por Elas”, cujo tema era “A Mulher no Poder Estatal e na Sociedade”. Alcione era uma das convidadas. Suponho que estivesse lá por causa de seu poder na sociedade — e também para justificar o vídeo…

Um samba que se canta só, e mal!, é só um autoengano. Um samba que se canta mal e em grupo pode ser sintoma de uma era, um engano coletivo. A ideia, acho eu, foi juntar mulheres poderosas num encontro para evidenciar que o Brasil mudou. Como sabem Roraima, o Rio e Thompson Flores.

Além de Cármen — com um vestido salmão e um espécie de toga (!) da mesma cor — e Alcione (à frente, de calça comprida), estrelam o vídeo a presidente do STJ, Laurita Hilário Vaz (de óculos, atrás de Carmen); a advogada-geral da União, Grace Mendonça (de casaquinho branco); a procuradora-geral da República, Raquel Dodge (de vestido estampado); Lúcia Braga, presidente da Rede Sarah (loura, atrás de Dodge); Betânia Tanure, da Betânia Tanure Associados (atrás de Dodge, ao lado de Lúcia), a empresária Luiza Helena Trajano (de vermelho) e, de relance, à esquerda, a procuradora-geral do Ministério Público junto ao TCU, Cristina Machado. Estiveram ainda no evento Rosa Weber, presidente do TSE; Maria Silva Bastos Marques, presidente da Goldman Sachs, e Ana Maria Machado, membro da Academia Brasileira de Letras.

Quem baba de ódio contra o que chama “ideologia de gênero” é Jair Bolsonaro, não eu. O que me incomoda é outra coisa. Eu não acredito numa “justiça feminina”, num “poder feminino”, numa “literatura feminina”, numa “química feminina”, numa “física feminina”, numa “pintura feminina”. Acho isso tudo uma trapaça intelectual. Aposto efetivamente na igualdade de gêneros na vida intelectual, social e pública, identifico e acuso a desigualdade e acho que esta tem de acabar. Que se faça, pois, o seminário sobre o papel crescente da mulher no Estado e na sociedade, mas que não se dê a entender, como resta subjacente, que o gênero muda o direito, as artes, a filosofia ou, sei lá, o capitalismo.

Até porque estão em curso óbvias agressões à Constituição e ao estado de direito. E tais agressões se dão durante o reinado de mulheres, quando não são promovidas por elas ou se exercem com a sua conivência. E não creio que o gênero esteja na raiz da omissão ou da ação desastrada.

“Ah, mas que mau humor, Reinaldo! Era tudo brincadeira!”

Pois é…  Lamento se assim parecer. O fato é que o país passa por uma situação grave o bastante para que se cobre mais circunspecção de poderosos e poderosas.

A necessária igualdade de gênero também passa por não admitir que as mulheres poderosas têm direito à banalidade ou à alienação, ainda que afetada. Nem as mulheres têm o direito de fazer isso com a mulher.

Quero é saber que medida tomará a presidência do Conselho Nacional de Justiça no caso do desembargador Thompson Flores. E, ao escrever tal coisa, não indagado o sexo de quem está no comando do órgão.

Brasília pode até ser o novo túmulo do samba. Mas não pode ser o túmulo do estado de direito.