Quando o lobo mau sai dos livros. Por Guilherme Boulos – Heron Cid
Bastidores

Quando o lobo mau sai dos livros. Por Guilherme Boulos

11 de julho de 2018 às 10h29

A violência contra crianças é sempre um sinal de barbárie. Hoje, vivenciamos uma escalada de ódio ao diferente, expressa como xenofobia e que põe em risco toda uma geração, no momento de maior necessidade de cuidado. A formação da personalidade na infância está sempre às voltas com signos como desamparo e separação.

Em recente artigo, a psicanalista Vera Iaconelli observa ser indispensável essa proteção de lidar “com experiências cada vez mais complexas, intermediadas por adultos responsáveis”. O presidente dos Estados Unidos, ao lado de outras autoridades, mostra não ter essa responsabilidade.

Falamos, aqui, dos chocantes casos das crianças separadas do convívio familiar apenas por serem imigrantes. É importante ressaltar que a crueldade e o horror de prender essas crianças sem parentes em jaulas é um agravante da situação de violência e desconstrução daquela personalidade. Por si só, o afastamento forçado é violação gravíssima.

Ensandecido, Donald Trump achou por bem mudar administrativamente o critério do Departamento de Justiça de seu país impondo “tolerância zero” a pessoas com situação ilegal. A família é automaticamente considerada criminosa e, caso tenha alguma criança, recebe uma pena que demonstra a mais profunda desumanidade: sob o pretexto de não as mandar para presídios, colocam os pequenos em estruturas à parte e impedem o contato. Relatos apontam a permissão de apenas um contato telefônico por semana.

Aparentemente, Trump pretende pressionar o Congresso estadunidense para aprovar restrições à legislação migratória. Ou seja, usa o drama e a comoção pelo alijamento do convívio familiar para barganhar retrocessos institucionais no Parlamento.

Os últimos dados divulgados pelo governo dão conta de 11.351 menores sob custódia estatal, entre abril e junho deste ano. De acordo com a Associated Press, 2.033 crianças e adolescentes foram separados dos seus pais ao tentarem entrar nos EUA.

Aqui vale mencionar o silêncio conivente do governo brasileiro, sob a batuta do golpista Temer: segundo o nosso consulado em Houston, há pelo menos oito crianças brasileiras nessa situação. Qual o acompanhamento que o governo tem dado para essas crianças?

Ou a subserviência aos EUA é maior do que a preocupação com nossas crianças? Longe de esboçar reação altiva, Temer recebeu sorridente o vice-presidente dos Estados Unidos em Brasília e, ao que consta, ainda levou pito.

A perversidade não tem fronteiras. Trump fez escola em terras brasileiras. Nesta semana, o jornalista Marcelo Auler publicou em seu blog e no Jornal do Brasil a história de uma família de imigrantes haitianos em São José dos Pinhais, interior do Paraná, que teve três filhos arbitrariamente retirados do convívio familiar pelo Judiciário e uma ordem de deportação infantil. As crianças passaram 45 dias sem ver seu pai e sua madrasta. A mãe foi vítima dos terremotos de 2010, nos quais uma das crianças perdeu um dos braços.

A tentativa de reconstrução da vida no Brasil estava dando certo. O pai trabalha. A mãe só não está em atividade porque a nossa estrutura patriarcal e racista dificulta que mulheres grávidas tenham emprego no Brasil. Eles têm endereço fixo e estavam com todos os seus documentos de refugiados em dia.

Parece que a única explicação é um ódio ao diferente, ao estrangeiro, ao pobre, ao imigrante. Por força de advogadas e advogados populares, bem como de representantes da sociedade civil (nesse caso os da ONG Casa Latino-Americana – CASLA, Ivete Caribé da Rocha, Nádia Pacher Floriani, Henrique Delavi Daum e Tânia Mandarino), conseguiram evitar a deportação, prevista para 22 de junho passado. Conseguiram ainda autorização para que a família finalmente pudesse se reunir no último domingo 1º. As crianças têm entre 9 e 10 anos.

A psicanalista Vera Iaconelli, no já citado artigo, chama atenção para outro ponto. Para ser bem-criada e formada como cidadã, a criança necessita de uma rede que vai dos seus familiares até as estruturas em sua volta: escola, estado, país, mundo. Faz sentido para qualquer pessoa se sentir responsável pela felicidade futura das nossas crianças.

Devemos nos perguntar seriamente o que essas medidas estão fazendo com uma nova geração. Qual o grau de desconstrução de sociabilidade, de trauma que essa geração terá? É uma triste coincidência que, na mesma semana que estourou a crise nos Estados Unidos, e que as duas crianças haitianas refugiadas no Brasil seriam deportadas, foi assassinado brutalmente o menino Marcus Vinícius da Silva, no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro.

A foto de seu uniforme manchado de sangue é um machucado em nossas almas. É como se histórias infantis, na precisa analogia de Iaconelli, terminassem sempre com a crianças sendo comidas pelo Lobo Mau. 

Carta Capital